Perguntas sobre meditação 17: o significado da entrega espiritual
Pergunta:Eu não sou um seguidor do seu caminho, mas às vezes penso sobre o caminho da devoção e entrega e, quando o faço, minha cabeça parece lutar contra ele muito energicamente. Ela diz: “Não, você não pode se entregar”, porque não me sinto como se soubesse exatamente para o que estou me entregando. Ela me faz sentir que estou agindo de uma maneira cega.
Sri Chinmoy: Você não precisa seguir o nosso caminho, mas eu gostaria apenas de esclarecer que a entrega, se entendida apropriadamente, é a coisa mais fácil que existe. Mas se não é entendida apropriadamente, ela é a coisa mais difícil do planeta. No mundo, quando vivemos na consciência física, nunca queremos nos entregar a outra pessoa. Mas quantas vezes por dia nos entregamos à ignorância dentro de nós mesmos, apesar de sabermos que estamos fazendo algo de errado? Nós sentimos: “Tudo bem, somos mesmo incapazes”, e nos entregamos. A mente mais elevada nos diz que estamos fazendo algo de errado, mas ela se entrega devido à unicidade dela com a mente mais baixa.
Muitas coisas são assim. Suponha que um amigo seu está fazendo alguma coisa errada, e ele pede um favor a você. O que você faz? Você presta o favor, porque ele é seu amigo, apesar de tudo.
Mas tomemos agora somente o lado positivo. Se sentirmos que nosso corpo inteiro pertence a nós, clamaremos a nossa cabeça como nossa e os nossos pés como nossos. Talvez eu sinta que a minha cabeça tem algo que os meus pés não têm. Digamos que a minha cabeça tem iluminação. É difícil para a cabeça atingir a iluminação antes do coração, mas digamos que a cabeça é mais elevada que os pés. Portanto, a cabeça tem alguma riqueza. Eu clamo a minha cabeça como minha e os meus pés como meus. Diminui a dignidade dos meus pés conquistar a mesma coisa que a minha cabeça está mais do que pronta para dar a eles? Não, pés e cabeça são um. Num momento preciso da ajuda de minha cabeça, noutro preciso da ajuda de meus pés. Somente pela minha unicidade, minha unicidade consciente, com os meus pés e com a minha cabeça, obtenho a riqueza deles. Essa é a verdadeira sabedoria.
De maneira semelhante, quando nos entregamos a Deus, nós nos entregamos à nossa parte mais elevada, porque Deus é a nossa parte mais iluminada. Não podemos separar Deus da nossa existência. Se sentimos que nós e Deus somos um, então Deus é a nossa parte mais iluminada, e nós, por enquanto, somos a parte não iluminada. Somos espertos, somos sábios. Sabemos que a pessoa que foi iluminada, que é toda iluminação, é também parte e parcela de toda a nossa existência. Logo, vamos até a pessoa e recebemos Dele. Se entendemos entrega dessa maneira, não há problema.
Mas se entendermos entrega como a entrega de um escravo ao seu senhor, nunca seremos capazes de sentir a nossa unicidade. O escravo se entrega ao senhor por medo. Ele teme que seus serviços sejam dispensados caso seu trabalho não seja bem feito. Ele sente que, não importa o que tenha feito, mesmo que tenha feito tudo pelo senhor de maneira plena, devotada e até mesmo incondicional, ainda assim não há garantia de que o senhor dará a ele aquilo que o escravo quer ou que o senhor ficará realmente satisfeito com ele. Mas quando oferecemos a nossa existência a Deus, temos o sentimento de unicidade entre Pai e filho ou Mãe e filho. O filhinho sempre sente que tudo aquilo que o pai dele tem é dele também. O pai tem um carro. O filho tem apenas três anos de idade, mas diz: “Eu tenho um carro”. Ele não precisa dizer: “Meu pai tem um carro”. Ele simplesmente dirá: “É o meu carro, nosso carro”.
Portanto, se mudarmos a nossa compreensão sobre a nossa relação com Deus, não haverá problema. Se Ele tem Paz, então temos todo direito de clamar a Paz Dele como nossa. Ele é o nosso Pai, nós podemos herdá-la. Porque Deus é o nosso Pai, porque Deus é a nossa Mãe, podemos ter esse tipo de sentimento. Se sentirmos que somos escravos de Deus e Ele é o nosso Senhor Supremo, que estamos aos Pés Dele e teremos de fazer tudo por Ele, então não teremos nenhum sentimento interior, nenhuma convicção, nenhuma garantia de que ele nos satisfará. Mas se temos o sentimento de unicidade entre Pai e filho, entre Mãe e filho, onde está o problema?
Nós não entregamos nada; somente nos tornamos cientes de que pertencemos a alguém que possui tudo. Apenas clamamos tudo e possuimos tudo a qualquer momento. Para os pés, sentir unicidade com a cabeça não é difícil de maneira nenhuma, porque eles sabem que ela também precisa da ajuda deles muitas vezes. Igualmente, quando aspiramos, sentimos que Deus precisa de nós de modo equivalente. Assim como precisamos Dele para realizar o Altíssimo, a Verdade Absoluta, Ele também precisa de nós para a Manifestação Dele. Para nossa realização, precisamos muitíssimo Dele; para Sua Manifestação, perfeita Manifestação, Ele precisa de nós. Sem nós Ele não Se manifesta ou não pode Se manifestar. Se não diminui a dignidade de Deus tomar uma pequena ajuda de pessoas ignorantes para a Manifestação Dele na Terra, como pode diminuir a nossa dignidade pedir a Deus um pouco de Paz, Luz e Felicidade?
Precisamos estabelecer a nossa consciente unicidade com Deus. E então não haverá entrega, mas apenas um mútuo dar e receber.
Inspiration-Garden and Aspiration-Leaves, p. 37-40